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quinta-feira, 10 de maio de 2018

Tenebra -- Capítulo 1. Um abismo atrai o outro parte 3(final) Daniel D.


Agora, o tronco que escolhera estava bem menor. Deixou a madeira em um formato quadrangular, limpava o suor que escorria por sua tenta, enquanto sua irmã caminhava pelas redondezas.
-Não creio nisso! – Ela exclamou distante. – Vem dar uma olhada nisso!
-Espero que seja algo interessante, estou quase terminando aqui.

 Foi rompendo várias plantas, aproximadamente à trinta passos da irmã.  Ao chegar na origem do chamado da irmã, viu-a em pé em frente há uma grande árvore, estava com os braços cruzados olhando o que parecia ser um altar decorado com velas e outros artefatos.
-Mas que diabos é isso? - Perplexo, indagou.
-Quando você esteve fora, encontraram vários desses altares por aí.  – A moça acabou por levantar o dedo indicador até uma parte mais alta árvore, “Rita, a senhora” estava gravada na árvore por marcas de faca.
-Rita? Quem no fim do mundo, é Rita?
-A bruxa do crepúsculo. Houve uma pesquisa aqui na cidade e desconfiam que ela era essa bruxa.
-Quem faz essas coisas? E quem era ela?
-Quem faz isso é claramente doente. Ninguém sabe ainda. Essa tal de Rita nasceu em 1845 e morreu em 1883, nada de corpo ou família foram encontrados.
    No altar haviam velas já derretidas pelo fogo, todas perturbadas constantemente pelo vento. Dois anus negros estavam mortos, pendurados nas raízes da árvore que emergiam do solo, havia também um pote com uma espécie de órgão dentro. Uma folha de caderno também jazia no altar, escrito com caneta de cor preta estava:
                        Bestia Bestiam novit!
-Vamos sair daqui, não parece que faz muito tempo que colocaram isso aqui.
-Isso, vamos. Já estou com arrepios. – Axel cruzou os braços com a brisa gélida que soprou pelas plantas.
 Foram andando até retornarem à caminhonete. Axel pegou a tora que havia cortado e inçou na traseira da caminhonete.
-O quão doente é a pessoa que faz um altar para uma mulher que comia crianças? Eu não entendo. – Clara questionava, inconformada, enquanto sentava no banco do veículo.
Axel entrou, fechou a porta e iniciou a máquina.
-Bestia Bestiam novit!
-Hã? Que isso?
-Latim, das aulas dominicais na igreja. Significa: “Um ruim reconhece o outro.”
                            **
  Colocara uma jaqueta jeans sobre seu casaco verde-escuro e uma bota que acolheu sua calça, o vento ainda estava forte e sacudia as árvores ao redor do casarão. Seguiu a trilha que cortava a floresta mais próxima, a tal cabana estaria numa área remota. Trovões ainda rugiam.
  Quanto mais longe na floresta, mais inconfortável se sentia. A cada passo sentia-se observado, ouvia um barulho de inseto em seu ouvido e o som de anus pelas árvores.
 O vento sacudia os arbustos e árvores. Por vezes sentiu um cansaço nas costas e uma dificuldade para respirar. Puxou o mapa do bolso, mas sua visão começou a embaçar, decidiu então se sentar sob uma mangueira selvagem, com alguns frutos pelos galhos, picados por aves. Abaixou a cabeça e respirou fundo. O silêncio foi quebrado por uma voz suave.
   -Perdido, meu senhor?
     Álvaro não esperava encontrar alguém naquele lugar distante dentro da mata, assustou-se e logo pôs-se de pé. Respiração ofegante.
    -Não, eu estou... estou... estou caminhando. – Disse ao estranho com muita dificuldade.
    -Fazia tempo que vi uma boa alma por essas bandas. O que procuras? Talvez minha ajuda seja de bom grado.
    Demorou uns segundos antes de responder. A figura daquele homem aparecendo subitamente, o perturbou os sentidos. Era um homem negro de chapéu, porte médio e de alguns cabelos brancos, vestia uma camisa branca amarrotada, uma calça de trapos e botas sujas.
Depois de muito encarar o que parecia ser um agricultor, Álvaro cortou o transe, olhou para o solo de frutas podres pensando a resposta.
-Não sei ao certo, meu senhor. Só caminhando por aqui. Pareceu um belo dia pra uma caminhada.
- Belo dia? Já vi melhores. O dia tá carrancudo, céu fechado, prefiro quando o sol brilha, gosto da quentura, do calor. Tem destino essa tua caminhada? – O senhor acabou que por sentar no chão e, com uma faca, começou a descascar uma manga madura. – Aceita?
-Não, obrigado. Quanto a minha caminhada, eu não sei.
-Hm, mas não está perdido, está?
- Não.
-Ah bom, oh coisa ruim de estar. Pessoas fazem loucuras quando estão perdidas, sabe?
-Você mora por aqui? – Álvaro recuperou o susto que levou, sentou novamente e começou a tomar a posse das perguntas. – É uma área bem distante. É agricultor?
-Moro por aqui sim e sou agricultor, eu gosto da tranquilidade da mata, o canto dos bichos. Quanto mais longe do barulho da cidade, melhor pra mim. – Com a manga já descascada, o senhor separa uma fatia e abocanha, o suco escorre por sua barba crescida, branca. – Isso na tua mão é um mapa? Qualquer coisa posso ajudar, conheço esse buraco como ninguém.
  Olhando para o mapa por uns segundos com um certo receio daquela figura misteriosa, mas acabou por dar-lhe, esticando-se em sua direção. A figura limpou as mãos sujas do caldo da manga em sua calça e apanhou o mapa, deixando a faca e a manga em cima de uma bolsa plástica. Ele analisou o mapa, olhou para Álvaro e voltou a analisar. Álvaro desvia o olhar do senhor.
-Parte bem distante em? Tinha uma cabana nessa parte circulada, vi quando era moço, mas a mata tomou conta. Então tens um destino, não tão perdido assim. O que procuras lá? – Esticando-se o senhor entregou o mapa a Álvaro, que hesitou em responder.
- Apenas por curiosidade, encontrei isso em uns livros.
-Hm, pois cuidado com a curiosidade, meu caro, o lugar é uma ruina, adentro na mata. É um lugar estranho, sombrio, existem lendas daquele lugar.
-Não temo lendas, no final são histórias inventadas.
-Histórias afundadas pela mentira, talvez seja diferente. Vejo que está determinado a chegar lá. Pode ser um caminho sem volta, caminho de espinhos, Álvaro. – Álvaro sente um desconforto e uma pontada no lado direito do tórax. - Abyssus abyssum invocat.
- O que disse? Como sabe meu nome? – Álvaro acaba por se levantar e bate a cabeça em um galho da mangueira.
- “Um abismo atrai o outro”, meu velho me dizia isso às vezes. Quanto a seu nome, conheço sua família. Sei da dor que sente, não cause mais dor em si. Seu tataravô era um homem triste, destruído pelo conhecimento e o amor. O livro é um poço sem fim.
-Então o livro é real? Que mistérios são esses?
- Não posso te contar, na verdade, nem eu sei. – O homem se levantou, apanhou a faca e a manga colocando-os na bolsa plástica e foi andando na direção a que Álvaro veio. – Só sei da dor que esse mistério pode causar. Cuidado com o que busca.
  Álvaro estava confuso e cheio de interrogações, ainda passava a mão pela cabeça por causa da batida no galho, a figura havia sumido. Aos poucos, algumas gotículas de chuvas caíram pela mata, o som ecoou pelas direções, era apenas um chuvisco. Perante a mangueira, poucas gotas o atingiram. Sentou novamente com as mãos e a cabeças no joelho. Ali ficou, ouvindo distantes trovões e o som do chuvisco.
  Com o tempo os sons começaram ecoaram distantes. E mais distantes. Sentiu um alívio nas costas e leveza nos pés, seus olhos, pesados, fecharam-se. Nada pode ouvir. Sem trovões, sem vento. Parecia estar dormindo, mas estava totalmente lúcido. Sua respiração aumentou de frequência, embora não teve a força de levantar o olhar.
-Você está bem, meu moço? – Uma doce voz quebrou o silêncio
   Lentamente Álvaro foi olhando sobre seus joelhos, a luz do sol feriu sua visão e o surpreendeu, acabou por se levantar bruscamente e se deparar com uma figura belíssima e familiar. Era a mesma mulher de seu sonho anterior, com a mesma beleza e um vestido branco ainda mais radiante.
-Quem... quem é você? – Ainda ofegante do susto, o moço tentou balbuciar as poucas palavras que surgiram em sua mente.
-Você não precisa saber quem eu sou. – A mulher falava com um encantador sorriso no rosto. – Você só precisa me ouvir. Sinto a dor que você está sentindo, sei quanto amava seu menino e por isso quero lhe mostrar algo.
 A moça esticou sua mão em direção a Álvaro, ele hesitou, afastando para trás até encontrar o tronco da mangueira.
-Sei que está confuso, mas não precisa temer.
Depois de pensar por uns segundos, ele também estendeu a mão para aquela mulher. Ela caminhou em direção à uma trilha da qual ele não havia percebido. Só a acompanhou. Olhou para o céu, estava limpo, apenas com algumas nuvens em flocos. Foram caminhando até um rio, aparentava ser profundo. Pararam na margem.
-Que lugar é esse?
-Escute-me, seu menino está em um lugar escuro e sombrio, você precisa ajudá-lo.
- Meu filho? Meu Miguel?
 A figura então apontou para o rio.
-Olhe na água.
Se aproximando lentamente, ele olhou nas águas negras daquele rio. Aos poucos ele viu a figura de seu filho vestido de branco, as mãos sobre o peito e uma rosa vermelha murcha entre seus dedos. O menino parecia estar dormindo, mas lágrimas escorriam pelo seu rosto.
-Miguel!! – Álvaro gritou e lançou-se para a água, mas a figura o puxou.
-Não vai ajudá-lo assim. Ele está sozinho, com frio e pode ficar assim para sempre. Não deixe que isso aconteça também com ele.
-O que eu posso fazer? Me diga, eu faço qualquer coisa, qualquer coisa pra tê-lo de volta.
-Você terá que seguir o mapa até o destino, precisa encontrar o livro.
-Então isso é real? Onde estou? Como você sabe de tudo isso?
-Não há tempo para perguntas, se apresse, antes que seja tarde. Mas cuidado, o lugar é guardado por uma fera, um cão. Sua tataravó o pôs lá, matará a qualquer um que encontrar perto do livro.
  Então toda a floresta começou a se dissolver em um clarão, o sol cresceu pelo céu e tudo se fez claro... até voltar a escuridão. Aos poucos veio uma luz fraca e oscilante. Sua visão começara a focar novamente e viu seu reflexo em um manto de ondas. Eram as águas de um rio, a superfície perturbada pelo vento. Recuperando os sentidos, ele se levantou e percebeu estar em uma diferente localidade. O mapa estava no chão, com duas pedras nas extremidades.
-Céus! Estou enlouquecendo? HEIN!!! – Ele gritou, sua voz ecoou pelas redondezas.
Refletiu as palavras daquela figura e apanhou o mapa. Percebeu que seguindo o rio, chegaria ao destino. Mas não seria fácil. Depois da clareira, na qual estava, havia uma área mais densa de árvores e mato. Contudo, aquilo não era suficiente para parar aquele homem, não depois do que viu naquele rio, depois da visão de seu filho. E assim foi indo sempre mantando contato visual com o rio e desbravando o matagal que crescia.
 Foi afastando as trepadeiras e os arbustos que surgiam em sua frente até que, subitamente, o matagal pareceu padecer e desaparecer. Caminhou até uma área totalmente descampada e lá avistou uma cabana feita de madeira e barro, coberta por ramas mortas e espinhos.
 A área era mais fria que o ambiente, nenhuma grama crescia ao redor da cabana, apenas grandes árvores mortas despontavam por trás da estrutura. O visual era bizarro. Hesitou de primeira, mas puxou uma coragem de continuar. Deu um passo dentro daquele círculo morto.
-Veja que você não me ouviu. – Uma voz familiar soou atrás dele.
-Você! Você mentiu pra mim, hein?
-Existem coisas que são melhores desconhecidas. Menti pra te proteger, meu rapaz.
-Não preciso que me proteja, sou adulto e posso cuidar de mim, não tenho medo. Não tenho nada a perder, o que eu tinha já se foi. Agora eu quero de volta.
-Não vá atrás de falsos conselhos, você sabe que isso não é natural, vai contra todas as leis.
-Então é possível? Trazê-lo de volta, é possível? Vou até o inferno até conseguir isso.
 Álvaro então apressou os passos em direção à cabana.
-Eu não posso te ajudar a partir desse ponto. Não deixe seu abismo atrair um mal ainda maior! Não deixe que esse abismo te consoma!
 Aquele pai desesperado ignorou os conselhos e foi correndo. Havia uma porta, totalmente acaba e corroída, com dois chutes veio a baixo. Com a jaqueta, Álvaro protegeu o nariz de um forte odor de podridão. A visibilidade era baixa, espinhos e ramas caíam do telhado, destruído por grandes galhos de árvores que caíram e estavam pelo chão. No final do cômodo havia um armário, perfeitamente preservado, com uma cor vibrante, de madeira viva. Sua respiração aumenta de frequência ao cada passo, os galhos no chão estrelavam como trovões a serem pisados. Passo por passo ele foi continuando lentamente, suas costas começaram a pesar e sentiu um desconforto estomacal. Seu coração foi aos pés, quando a solo em frente ao armário começou a se movimentar. Ele deu um passo para trás e paralisou em medo. Ele podia ouvir o vento rugindo nas árvores lá fora e um relâmpago clareou a escuridão daquele céu. A medida que o solo estremecia, Álvaro foi dando passos travados para trás. Sem perceber, ele tropeçou em um dos grandes galhos que despontavam por ali e acabou caindo. Uma massa esquelética tentava se erguer, rasgando a terra, o focinho da coisa emergia, assim como depois a cabeça e parte do torso.
Rapidamente, o moço foi se arrastando para a saída, porém, mais uma vez foi paralisado pelo medo ao ver uma figura negra emergindo do solo. Cuidadosamente e lentamente, Álvaro foi se levantando. A figura foi andando em passos lentos. Se revelava à medida que caminhava em direção a luz. Era uma espécie de cão esquelético, com toda sua pele e músculos misturados a terra e raízes, um olho estava destruído, enquanto o outro ainda estava intacto, um cheiro pavoroso vinha de sua direção. Distante de Álvaro por dez passos, a criatura parou. Emitia um rosnado infernal e apavorante, mostrava seus dentes pobres e afiados em sinal de ameaça. Álvaro tremia, não sabia a ação que tomar. Estava gélido e petrificado como uma estátua. Subitamente sua mente emitiu um comando a suas pernas e seu corpo, era hora de correr. Imediatamente virou as costas para aquele cão e começou a correr para a saída, correu como nunca havia corrido na vida, pôde ouvir a coisa correndo em sua direção.
 Os rosnados que podia ouvir de trás de sua nuca, lhe causava arrepios. Nunca tentativa que parar a criatura, puxou a porta e segurou. Seu corpo todo tremia, seu coração parecia desprender-se de seu peito. Apoiou a cabeça na porta, a criatura ainda rosnava lá dentro, mas o rosnado foi se afastando. Nesse momento percebeu que devia correr o mais rápido possível dali. Largou a porta e correu desesperadamente.
“Se eu entrar nesse matagal, isso me pega!”, enquanto pensou, freou e olhou nas direções. A criatura ainda não havia saído da cabana. Com isso, ele pôde respirar um pouco e tentar pensar.
O rio corria em frente ao matagal e ao círculo morto, havia algumas árvores maiores fora da zona morta. Seu raciocínio foi interrompido pelo cachorro que com um pulo derrubou aquela porta frágil. Ao ver Álvaro, a criatura uivou. Com o uivo estridente, Ele não tinha uma outra opção senão correr para uma grande árvore na margem do rio. E correu, passou em frente da cabana em disparado, a criatura se ouriçou e também correu em sua direção. Com a adrenalina, ele logo agarrou um galho firme e começou a escalar a árvore como um relâmpago, galho por galho. Ele escalou até um ponto alto da árvore, podia ver a criatura furiosa.
 Ele pôde respirar um pouco, quase não sentia suas pernas. Sua cabeça ainda zonza tentava pensar no que fazer dali para frente. Fechou os olhos e respirou. Fez-se silêncio, rapidamente abriu os olhos novamente, viu o cão se esticando e tomando distância.
-Não...Não. Não é possível!
A criatura ainda mostrava uma expressão ameaçadora e exibia seus dentes. O olhar vermelho em chamas. Logo pulou e agarrou na árvore com suas garras, subia rapidamente e com voracidade. Não havia para onde correr, a única saída acabou virando uma armadilha mortal. Álvaro continuou no mesmo galho e se equilibrando, foi em direção à área mais fina. Se agarrou em outros galhos menores acima de sua cabeça, se jogar no rio podia ser sua salvação. A criatura ainda subia sem descanso, as garras fincadas com força contra o trono.
-Vem me pegar, seu demônio. – Ele esperou a criatura emergir no galho em que estava. O visual e os sons emitidos pelo cão, eram de causar calafrios, o olhar era perturbador. A medida que a criatura ia andando, lentamente se equilibrando pelo galho mais grosso, Álvaro dava um passo para traz. Esperava o momento perfeito para pular, os olhos vidrados nos olhos da criatura. Uma sintonia macabra, olhos e respiração alinhados. Seu coração foi aos pés, quando chegou na área mais frágil do galho. A criatura se ouriçou novamente, se esticou e rosnou. Era hora! Soltando levemente seus braços ardentes dos galhos acima, se desequilibrou e se jogou para trás. A criatura, sem pensar, também se jogou com um grito estridente, o saco de ossos e terra pulou em direção ao rio.
 Na cabeça dele, o mundo girou. Pôde ver aquela besta infernal caindo no ar, em sua direção, quase que em câmera lenta. Seus sentidos só voltaram com o choque contra a água gélida do rio. Caiu, afundou e, logo, emergiu. Recuperando as forças nadou o mais depressa possível. O desespero lhe bateu quando ouviu a criatura se chocando contra a água.
“Se isso nadar, estou perdido”, pensou. Tinha certeza que estaria morto depois de nadar. Não teria forças para continuar correndo. E nadou. O mais rápido que conseguia. A água do rio não era forte, quando sentiu a areia, pulou em direção à margem. Ao chegar no solo, se virou para o rio.
 A criatura lutava para emergir, com muito esforço e soltava grunhidos de dor e desespero, mas acabou sucumbindo e afundando no rio. Seu esqueleto perdeu as forças e caiu para a morte. Se é que aquilo estava vivo.
Álvaro se aliviou quando aquelas águas turvas se aquietavam e as bolhas paravam de emergir. Com o corpo pesado de cansaço, desmoronou no solo da margem daquele rio. Com os dois braços esticados, tentava recuperar suas forças. Ainda ouvia os trovões distantes ecoando e as ondas pluviais formigando nas suas pernas.

Tenebra -- Capítulo 1. Um abismo atrai o outro parte 2


Clara terminava de resolver uma questão de química quando viu que sua substituta do horário da tarde havia chegado. A menina era mais magra, branca e tinha cabelos mais longos. Naquele horário, Clara se arrumaria para ir ao colégio, mas a escola havia declarado luto ao menino Miguel.
-Muito obrigado, Manoela. Você me salvou da matéria criada e administrada pelo capeta em pessoa! – Clara fechou o caderno com uma expressão de alívio.
-E eu não sei menina! Ainda lembro da agonia do ano passado. Aproveita pra descansar!
- Dormirei a tarde toda.
Como um rito de passagem, Clara levantou da cadeira do caixa e estendeu a mão com a chave da gaveta de cédulas e moedas.
-Que o espírito da simpatia dos varejos te proteja desse povo reclamão! – Clara declarou e entregou a chave. Ambas riem.
  Segurava o caderno entre os braços cruzados no torso, onde se podia ver a capa de um surfista ruivo sorrindo, enquanto andava em direção à saída, mas foi chamada pelo irmão, que correu até ela.
-Consegui que o Pitomba ficasse no meu lugar essa tarde. – Ele falou com um ar animado e ofegante, pela corrida. – Também peguei a caminhonete dele, quer um passeio? – Balançou as chaves na frente da irmã que sorriu.
 Entraram na caminhonete de cor azul desgastada e Axel dirigiu pelas ruas de Lafaiete.
-Por que esse machado está aqui? – Clara percebeu o artefato embaixo de seu banco.
-Nós vamos na mata! – Axel já sabia a resposta da irmã, por isso riu enquanto afirmava.
-Nós? Quando ‘nós’ decidimos isso?
-Ah vamos, faz tempo que temos uma dessas coisas de maninhos. Eu ainda quero presentear a Letícia, ela me esperou durante todo o ano passado. Você não tem colégio mesmo!
-Ok, desculpa. Farei isso por nós e por ela. O que tem em mente?
-Uma coisa que aprendi enquanto estava na distribuidora, na verdade um colega me ensinou: arte com madeira.
  Clara sorriu novamente. Embora sua renuncia no início, uma tarde de sono seria perfeita para ela, a menina gostou de ver o entusiasmo do irmão. O brilho no olhar do irmão enquanto cantava “Sweet Child O’ Mine” e dirigia pelas ruas, fizeram Clara lembrar de sua infância e o quanto ela precisava do irmão em sua vida. Abrindo um sorriso, a moça também pegou o embalo e começou a cantar. E assim foram seguindo, ouvindo várias canções do pai deles. Na maioria das vezes, internacionais ou de rock n’ roll. Com o sentimento de nostalgia em suas veias, eles não perceberam o longo caminho até a floresta. Mas não foram muito adentro da mata.
   Caminharam por uma trilha, Axel foi observando as árvores, até gritar em excitação, assustando a irmã. Ele havia visto o monte de madeira deixado pelos madeireiros. Exatamente o que procurava.
-Mana, vai na parte de trás da caminhonete e pega uma muda de jatobá.
-Que bom, senhor ecológico. Derrube três, plante uma.
   Enquanto a moça caminhava até a caminhonete, seu irmão cortava um dos troncos separados para ele. Podia-se ouvir os golpes do machado ao longe.
                           **

     Passara um tempo olhando o teto, decorado com pinturas de flores azuis, seus olhos começam a pesar e lentamente foram se fechando, uma sensação de conforto paira sobre seu corpo. Sua mente lentamente caiu num poço escuro, já não sentia seu corpo nem sua respiração. O moço foi sucumbindo ao cansaço. Ao remorso. Dirigindo perdido pela escuridão.
E houve o nada. Nada houve.
Sua consciência parece flutuar por um mar sem fim. Uma névoa começou a cobrir esse mar e imagens começaram a surgir, como visões.
   Um casarão em chamas, crianças mortas, um livro, uma chave, momentos que ele viveu com Miguel e uma gema.
    Sua mão se materializa e acaba por segurar a gema, embora ele não tivesse livre arbítrio para a ação, ele aproxima o objeto de sua visão, era oval e com uma coloração verde. Uma figura de uma mulher negra com um manto branco e de cabelos longos e encaracolados caminha por um gramado, seus cabelos dançavam com um vento de sussurros estridentes. Virando lentamente sua cabeça, ela sussurra: "O livro". 
      Aos poucos, sua consciência percebe-se a andar por uma trilha pela mata. Tudo era escuro. Em ambos os lados haviam imensas e retorcidas árvores com um visual sinistro e entrelaçado. A trilha se moldava à medida que sua consciência avançava.
Não muito tempo depois, uma cabana se materializa no final do caminho. Era velha e horripilante, digna de contos infantis, onde a qualquer momento uma bruxa má poderia sair de dentro. "Segredo, dentro" soaram suavemente de uma voz vinda de todos os lados da floresta, enquanto todo aquele cenário se dissolvia, logo as árvores derem lugar à um corredor, parecia familiar.
Em passos leves aquela consciência sem corpo foi caminhando até uma porta, com a força de um pensamento inexistente, a porta se abriu. O que havia através dessa passagem? Uma pequena biblioteca.
    Haviam quatro médias estantes de livros, uma escrivaninha com uma máquina de datilografar, um porta-lápis e um laptop. Também havia uma mesa pequena com três cadeiras e um sofá. Havia uma figura no sofá, um homem de casaco verde-escuro estava deitado com o rosto para o teto, estava adormecido. Pele branca, cabelo bagunçado, uma barba rala no rosto, era Álvaro. Sua consciência percebe a si, mas logo se volta para as prateleiras dos livros, vozes vindas de lá clamavam sua atenção. Novamente sua mão se materializa e puxa um caderno arcaico com capa vermelho-vinho, o artefato estava por atrás de três outros livros, escondido. Ao abrir o caderno, nota-se que era um diário. Uns turbilhões de vozes e gritos preenchem o espaço, tudo se dissolve em escuridão.
        Ele acordou sobressaltado. O suor escorreu por sua testa. Se pôs sentado no sofá e tentou recuperar o fôlego, sua pele formigava e sua mente estava tonta. Tenta levantar, mas não consegue. Sua respiração ainda estava intensa. Olhou o relógio, era meio-dia.
     Ergueu as mãos em frente do rosto e começou a analisá-las, as memórias daquele sonho distópico ainda estavam frescas em sua mente. Ele suspira e levanta devagar. Quase que involuntariamente, foi até a mesma prateleira que sua consciência havia checado. Sua mão esquerda foi lentamente viajando pelos livros, esticou-a e rapidamente puxou-a de volta, como um reflexo. Seu coração acelera. Havia mesmo algo atrás dos três livros, com suas duas mãos ele consegue alcançar o artefato. Não era um caderno, mas sim um pequeno livro. O achado o fez duvidar do sonho que teve. "Foi só um estúpido sonho.", afirma para si, porém sua curiosidade o faz folheá-lo. Era uma cópia antiga do livro "Memórias Póstumas de Brás Cubas", no qual nem sabia que sua família possuía.
       Depois das sete primeiras páginas havia algo incomum, havia uma chave ali gravada. Algumas páginas haviam sido recortadas no formato da chave. Era uma chave desbotada com um cordão vermelho amarrado a ela. Não lhe era familiar, mas tinha a sensação que sim. "O que vou abrir com isso? Por que colocariam uma chave aqui?"
     Ao passar dos instantes, enquanto olhava para o objeto, uma breve e fraca lembrança vinha e ia em sua mente. Tinha por volta de dezesseis anos, num dia chuvoso. Estava na biblioteca lendo algumas novelas de aventura, trovões rugiam como leões. Seus olhos que percorriam as páginas de um certo livro, foram capturados por uma figura alta de vestido azul escuro. Era sua avó, já com cabelos como neve e um andar calmo e elegante. O menino viu um cordão vermelho por entre os dedos da elegante senhora.
- O que seguras, minha vó?
- A curiosidade já matou muitos gatos, meu caro. - Ela seguiu seu caminho com um leve sorriso.
     Naquela idade, Marcelo definitivamente era um desses gatos. Pôs um sorriso travesso no rosto, colocou o livro lentamente no sofá e foi caminhando de pontas de pé. Eram por volta de quatro horas da tarde, mas, como o tempo estava fechado, já aparentava noite. Foi o que deu um visual sinistro ao casarão, que estava decorado por velas. Olhando pelos corredores, ele se deparou com sua avó apanhando um candelabro e indo em direção à uma salinha com móveis e objetos antigos.
      Com sua visão voando por todas as direções, percebe que o quadro pintado de sua tataravó estava torto, "Esse quadro foi perturbado", constatou e seguiu seu caminho em direção à luz do candelabro, que viajava pelas superfícies dos objetos. Seguiu até vê-la abrindo a salinha de antiguidades, pertencente a sua família por gerações. A chave foi usada para abrir uma gaveta em um antigo criado-mudo e a elegante senhora puxou um livro, escondido pelas mangas de seu vestido. De dentro do livro retirou o que parecia ser uma folha amarelada e logo escondeu na gaveta.                                                                                        
       O menino não pôde saciar sua curiosidade e nem teve tempo, logo a senhora fechou a gaveta e caminhou até a saída, o menino se adiantou e com pressa se pôs escondido, deitado no chão, na frente do sofá. Ouvindo os passos se aproximando, levantou a cabeça devagar e pôde ver algo sendo escondido por trás do quadro da tataravó.
     Era isso, agora lembrara com clareza aquele fatídico dia trevoso, sua avó nunca comentou, nem indicou se o viu no processo.
     Não muito certo do que fazer, apenas apanhou a chave e largou o livro ali mesmo no sofá e foi caminhando em direção à cozinha, onde largou o artefato em cima da pia e apanhou algo para comer. Não pôde. Revirou a dispensa, entretanto nada despertava seu apetite, pôs-se sentado na mesa da cozinha encarando o vazio. Queria chorar novamente, mas as lágrimas não vinham aos olhos, só existia uma amargura.
  Logo depois, a curiosidade. Era como uma chama que crescia e estava corroendo-o por dentro, queimando-o, então se levanta, dá uns passos até a pia e apanha o objeto. Sai andando apressado até chegar ao corredor, lá o quadro de sua tataravó despontava-se na parede.
    Uma figura elegante com um vestido vermelho de rosas douradas bordadas e um olhar de superioridade, seu cabelo negro estava comportado, amarrado, sua pele era parda decorrente de sua origem indígena e havia uma marca saliente em seu pescoço indo de encontro a sua bochecha. Da altura de sua cintura e agarrando-a, estava um menino de suspensório e olhar inocente com um leve sorriso na boca, cabelo liso e pele branca. "Sra. Adelaide Nogueira e pequeno Sebastião, 1892" era a descrição escrita em letras miúdas e cursivas no canto do quadro. Retirando levemente o quadro da parede e logo analisou a parte traseira. Lá estava uma minúscula chave com a haste pendurada em um pequeno prego, “Deve ser isso” pensou. Em uma das gavetas da dispensa da cozinha, o proprietário puxa o molho de chaves do casarão, cada uma possuía uma pequena etiqueta, “quarto escuro” era o destino. 
   A porta abriu com um som estridente, um imediato odor de mofo e poeira logo voou pelo ar. Não haviam janelas no cômodo, apenas uma pequena lâmpada cujo interruptor Álvaro já havia encontrado na parede. Ao ascender, a luz era fraca e oscilante, mas suficiente para se visualizar propriamente o quarto. Vários quadros decoravam as paredes mofadas, haviam vários móveis e antiquárias espelhadas pelos cantos. Um armário vermelho, uma mesa de Jacarandá com apenas duas cadeiras restantes e uma poltrona azul adornada com folhas douradas. No fundo, o antigo criado-mudo. Se aproximara do móvel e usou a chave na primeira gaveta, apenas algumas velas despontavam dentro. Na segunda haviam algumas joias: sete pingentes, alguns brincos e dois anéis. Na terceira e última gaveta não havia nada.
    Álvaro, que estava ajoelhado, recuou com várias interrogações na cabeça. Olhava com um olhar de frustação, fora feito de tolo por suas memórias e um sonho simplório.
-Que maravilha! – Ele exclama coçando a cabeça. – Como é que me deixei levar por um sonho?

 Depois de suas palavras passou um tempo ali, sem se levantar, sem reclamar da situação. Olhava para o chão, sem pensar em nada. Voltou seu olhar para aquele móvel e percebeu algo com as gavetas; as duas últimas eram bem mais profundas que a primeira, mas olhando de fora, eram todas do mesmo tamanho.

-Fundo falso?
   Ele, então, retirou todas as velas e começou a deslizar a mão sobre a superfície da gaveta, fez pressão até o fundo ceder. Havia um pequeno brilho em seus olhos, lembrara das vezes que seu avô lhe fazia desafios, caça ao tesouro era o seu favorito.
    Retirou o fundo falso da gaveta e encontrou várias cartas, apanhou algumas delas e vira que pertenciam a seu tataravô, Álvaro Henrique Nogueira. O fato de seu nome ser uma homenagem já fora comentada algumas vezes dentre a família. Com uma pressa sem sentido, apanhou o monte de cartas entre os braços e foi até a biblioteca, onde a visibilidade era melhor. Jogou-as no chão e sentou-se, parecia ter doze anos em suas férias, sempre recolhendo coleções de livros e jogando-os em sua volta. Seu tataravô havia escrito as datas no verso de cada carta, datavam desde de agosto de 1875 e a última em 1883.
  O homem não sabia por onde começar, talvez do começo como de costume, mas sentia que devia ler a última, era uma chama de curiosidade de crescia. Apanhou a carta de 25 de abril de 1883.
  Querida Adelaide,
Muito sinto pelas ocorrências devaneias dos últimos nove anos, desde a volta da Amazônia não sou o mesmo, eu descobri coisas, coisas que ninguém deveria e agora tenho que arcar com meus atos. Eu profanei a lei da natureza. Tenho culpa pela morte das criancinhas, devo com isso acabar, mas necessito de tua ajuda. Segredos da vida e da morte a mim foram relevados enquanto estava pelas aldeias, reuni todos esses segredos em um livro que escrevi, um livro médio sem capa de cor marrom, deixei o maldito dentro de uma caixa com outros artefatos. Promete-me que vai levá-lo até uma cabana no meio da mata, deixarei aqui um pequeno mapa. O livro não pode ser destruído, assim tentei queimá-lo, entretanto não pude. Enterre-o no solo da cabana e guarde esse segredo, esse mal deve ser esquecido e por favor, queime todas as minhas cartas que escrevi. Não esqueça de falar de mim ao meu pequeno Sebastião, como amo esse guri. Eu peço perdão se a ti causei tristeza, mas saiba que sempre te admirei e a ti meu coração sempre pertencerá. Tenho que acabar com o mal que criei. Nos vemos do outro lado, minha querida. Eu te amo.
Álvaro H. Nogueira, 25 de abril de 1883.

  No envelope havia um pequeno mapa, no qual Álvaro analisou. “Que livro é esse? O que aconteceu com o meu tataravô?” as perguntas pairavam pela sua cabeça, sua curiosidade aumentava;
“Segredos da vida e da morte...”
  Dentre as várias cartas, haviam o que pareciam ser folhas arrancadas de um diário, a caligrafia era similar a das cartas. Com certeza seu tataravô também as escreveu. Passando as mãos por elas, escolheu uma aleatoriamente. Datava de 1876.
   26 de julho, 1876, quarta-feira.
Ontem tivemos um índio muito adoentado, caíra de uma árvore e fraturou alguns ossos, ossos esses que perfuraram alguns músculos. Era um jovem índio, ainda criança, situação triste. Desenvolveu uma infecção, a área da costela ficou roxa, com muita febre, antecipei que não tinha muito tempo restante. A família o levou para uma oca separada, eu não era permitido lá. Ouvi choros a noite, mas o mais estranho foi de manhã quando vi o menino andando. A costela ainda estava roxa, ele andava com dificuldade, mas parecia estar renovado, me espantei, perguntei ao pajé, mas como de costume não respondeu. Andando pelo rio, encontrei várias aves mortas e alguns outros animais, uns peixes, um jacaré e uma lontra. Tenho que descobrir o que fizeram com ele, sua situação era crítica. Isso poderia ajudar e muito na medicina.
 
     Aquilo o intrigava, mas por alguns minutos permaneceu sentado no chão rodeado pelas cartas, toda sua nostalgia de criança curiosa começara a se dissipar e a amargura da vida adulta voltara aos poucos. Se sentia inerte, sem vida, apenas caindo num vazio sem fim. Olhava em sua volta e sentia-se sozinho. Embrulhou o mapa e colocou no bolso da frente de sua calça, andou até a cozinha, onde deixara o celular em cima da pia. Olhava os contatos. Pensava em ligar para alguém, não sabia quem. Aquele homem não tinha muitos amigos próximos, dedicava seu tempo livre exclusivamente a seu filho. Acabou por colocar o aparelho novamente em cima da pia e decidiu ver a tal cabana mencionada na carta de seu parente.

Tenebra ---- Capítulo 1. Um abismo atrai o outro parte 1


                                     "No túmulo dum menino"
                                                Casimiro de Abreu 

               Um anjo dorme aqui: nas auroras apenas,
                Disse adeus ao brilhar das açucenas
               Sem ter da vida alevantado ao véu.
                - Rosa tocada do cruel granizo -
                Cedo finou-se e no infantil sorriso
                assou do berço pra brincar no céu!
                                                                  
                            ***
        O dia estava amargurado com nuvens espessas e densas que cobriam o céu e com uma melancolia desgraçada a pairar pelo ar. O copo de água acabava de ser posto na mesinha da pequena biblioteca, algumas pequenas gotículas de água escorriam do copo à madeira enquanto a figura de um homem estremecido levara novamente suas mãos ao rosto e suas lágrimas incessantes escorriam pelo relevo de sua face. Olhava pela grande janela vertical do local, observando algumas árvores, palco de muitas memórias e onde uma grande árvore desprovida de folhas jazia.
         Aquele dia estava de morrer. Não se ouvia nada além dos remotos trovões e os poucos pássaros que gorjeavam por aquele dia vazio. A maioria era anus que apenas cantavam a mesma melodia pelas árvores, uma melodia semelhante a uma serenata em plena a luz do dia, mas uma serenata mórbida e vazia, apenas cortando o silêncio daquela manhã.
         Assim como os anus, alguém acabara de quebrar o silêncio e o choro abafado do sujeito, era o Investigador Silveira Neto, um homem alto, esbelto, de barba comprida e cabelos negros, que se encontrava com a cabeça baixa ao adentrar naquele cômodo cujo ar tenso poderia matar qualquer um de desgosto. "Que situação miserável desse cidadão!", pensou o investigador logo ao entrar na biblioteca. Álvaro já havia percebido a companhia, mas deixou que a pessoa se pronunciasse primeiro.
      - Senhor Álvaro Nogueira? - Falou o investigador com uma voz grave e firme, embora sua fala tremesse com os primeiros fonemas anunciados.
        Álvaro levanta a cabeça e enxuga as lágrimas que despencavam pelo seu rosto.
       - Sim? - A voz soava vazia e perdida, como um eco sem fonte.
       - Eu só queria oferecer minhas condolências e dizer que... hm... mesmo que a situação pareça difícil, estamos trabalhando duro para encontrar os responsáveis. Prometo colocá-los numa cela e eles nunca sairão de lá. A justiça será feita. 
       - Obrigado. - As duas únicas palavras disparadas, pelo agora, único remanescente da família Nogueira, mostravam o quanto ele estava despedaçado e perdido.
         Antes de sair, o investigador se aproximou dele, colocou a mão em seu ombro.
    - Força, meu rapaz, nunca é fácil. Já vi tantas situações dolorosas, mas cada caso é único e delicado, depois de um tempo a dor passa, restando só as memórias. - O investigador não tinha certeza se suas palavras estavam no tom certo. Consigo ele pensava "Que Deus ajude esse pobre rapaz".
      O investigador foi caminhando à saída. Fechou a porta. O silêncio voltou a governar o cômodo. Álvaro abaixa sua cabeça mais uma vez, mas suas lágrimas estavam entaladas, era como se todo seu choro tivesse ido embora, deixando para trás apenas uma amargura.
      O tempo estava atemporal. Parecia que tudo andava em uma marcha lenta e agonizante. Quando se deparou de si, olhava fixamente para o jardim. Aquele jardim que fora testemunha de tantos momentos ímpares. Era nesses momentos que ele se apegava nessa hora.
      Revirando a gaveta daquela mesma mesinha, a qual não havia saído desde ter retornado do funeral, ele encontrou uma fotografia; 27 de outubro de 2004, era a data que fora escrita no verso branco do artefato, enquanto na frente podia se ver Álvaro e seu filho Miguel. Os dois estavam plantando uma muda de ipê-amarelo, os sorrisos não negavam o quanto estavam felizes. "Agora vamos colocar a plantinha no chão e cobrir o buraco", essas palavram ainda ecoavam na mente de Marcelo, exatas palavras que disse ao filho. A lembrança desencadeia um pequeno, frágil e singelo sorriso de canto de boca, acompanhado de um fio de lágrima, que escorre amarga e cai na fotografia. "Meu pequeno anjo", Álvaro sussurra enquanto abraça a foto.
    Não muito longe, os cidadãos de Lafaiete pareciam ter se recuperado do choque de três dias atrás. O mercadinho "Raio de Economia" estava funcionando como o habitual, um fluxo tranquilo de pessoas transitando nas sessões de mercadoria: uma criança implorava a mãe um biscoito recheado, uma idosa, indecisa, verificava os preços de alguns detergentes e um rapaz escolhia alimentos enlatados. No caixa, Clara, adolescente de 17 anos, atendia um cliente. A moça tinha pele negra, cabelos lisos, vestia uma blusa vermelha com um raio estampado e um gentil sorriso no rosto, embora o cliente não parecia retribuir, logo escondeu seu sorriso e voltou a checar os produtos por ele comprados.
 - Com tudo... Deu R$19,85, moço. - Clara acabava de conferir o resultado na calculadora, mas o rosto do cliente não mostrava uma total satisfação.
 - Consegui isso tudo por R$15,50, mês passado. - O freguês resmunga organizando as sacolas, haviam várias barrinhas de proteínas e cereais.
 Ela revira os olhos.
- Esses produtos são bem caros e aumentaram do mesmo passado pra cá, você ainda tem sorte de conseguir esses produtos por essa região.
O cliente trombudo sacou algumas cédulas da carteira, esperou pelo troco, arrumou as bolsas de compras e foi embora.
- Esse povo só sabe reclamar. - Clara reclamou, enquanto guardava as cédulas numa gaveta, olhando pro irmão, que arrumava algumas prateleiras no setor de biscoitos e bolachas, e um outro funcionário que limpava o mercadinho. - Parece que o clima faz isso com as pessoas. Céu emburrado, pessoas carrancudas.
    - Nem se compara com as picuinhas do povo da grande cidade e eles nem precisavam de tempo pra isso. - Axel afirmou com segurança. - Às vezes dava vontade de trucidar algum infeliz. - Axel agarra um pacote de bolachas e simula um estrangulamento.
 A encenação de Axel despertou um riso espontâneo na irmã, que logo foi interrompido pela chegada de sua chefe, uma mulher de 29 anos, branca e com cabelos curtos nos ombros.
     - Que bom que vocês estão aqui! - Melissa exclama. - Pode trazer as caixas! - Ela grita em direção à um caminhão estacionado do outro lado da rua, “Lucilene Design" poderia ser lido no lado direito do automóvel.
      Um rapaz de estatura média, com mesmo logotipo do caminhão estampado na camisa, entrega uma caixa em frente do mercadinho. Melissa o pagou. Ele vai correndo em direção ao caminhão e inicia o trajeto contrário. Interrogações pairavam pelas cabeças dos ali presentes.
     - Que raios é isso, Mel? - Clara indaga.
     - Ideia do meu pai, como sempre. Ele me liga do nada no meio da manhã e diz que tem um carregamento chegando para essa noite e esses uniformes que ele encomendou.
      -Vamos ter que usar uniformes? E de cor laranja? - Clara acabara de abrir a caixa e retirar um exemplar.
     -Qual problema com a cor laranja? Você ama vermelho. - Melissa aponta pra camiseta e alguns acessórios da moça, todos em cor vermelha. - Além do mais, é algum tipo de união entre a rede de supermercados da região. Primeira vez que Lafaiete entra no circuito. Não sei por que diabos eles escolheram laranja.
    - Que vasilha é aquela que você mandou buscar? - Axel pergunta pra Melissa, colocando o pacote de bolachas de volta no lugar.
     - Você pegou? Ótimo! Obrigada. É uma caçarola com uma torta de frango em fatias, bom... vou ver o Álvaro, o coitado dele estar arrasado. Vocês o viram no funeral? Foi de cortar o coração, o meu está despedaçado.
 - Miguel era um menino de ouro. - Reflete um moço que estava limpando a sessão mais próxima, a de utensílios domésticos. Parou de varrer e apoiou o queixo na vassoura, pensativo.
   -Sim, cara... é tão difícil imaginar que ele não vai vir mais aqui, ele adorava essas bolachas. - Axel desabafa.
   - Ele mesmo gostava de fazer as contas das compras, menino esperto. – Clara disse com um ar chateado.
    -Sim, uma grande perda. Isso é inacreditável, Miguel não merecia isso..., mas, agora eu vou indo pra tentar consolar o pai dele. Experimentem os uniformes. E Clarinha... laranja é definitivamente sua cor! - Melissa apanha a caçarola e vai em direção a seu carro, ela pretendia dirigir até a casa de Álvaro, que se situava numa parte mais remota do distrito.
     - O que não fazemos por um trabalho. - Vencendo o orgulho a moça veste um dos uniformes femininos de cor laranja.
     - Nem consigo olhar pra ti, mana. Esse laranja com teu vermelho... nah!  
     - Axel, calado!
                              **
       Por volta de vinte minutos, Melissa dirigiu até chegar à uma espécie de colina cercada de árvores e de onde uma casa podia ser vista. A casa era grande, com uma fachada cor bege e detalhes em branco, já pertenceu a gerações da família Nogueira. A moça estacionou seu carro. Vai até o portão, no qual estava aberto. Sempre esteve aberto. Enquanto andava em direção à casa, ela observava o belo jardim e um campo gramado que se despontavam ali.
        Toc! Toc! Toc! A moça bate três vezes na bela e adornada porta de madeira, com detalhes de aves. Um tucano, uma coruja e alguns papagaios podiam ser vistos nos adornos.
        Passos se aproximaram até finalmente a porta abrir. O atendente parecia que não tinha dormido por uma semana.
        -Espero que não esteja incomodando, mas trouxe isso pra você. - Melissa se explica ao quase morto-vivo que na porta estava parado. Um "Tudo bem, entre!" saiu fracamente, sem vida pelos lábios de Álvaro, que vagarosamente se abriram.
         A moça entrou. Ele fechou a porta. Os dois caminham até a mesa da cozinha, onde se sentaram. Havia uma cesta cheia de frutas, um copo vazio e uma garrafa de Conhaque, no qual ele tentara beber, mas sem sucesso.
    -Trouxe uma de suas comidas favoritas... torta de frango. - Melissa sentenciou levemente e cuidadosamente, com os olhos fixos nele.
 -Muito obrigado, mas salvarei pra depois. Estou sem apetite. Na verdade, estou sem vontade pra nada. Não sei o que faço, tudo foi tão cruel, nem tive tempo de... digerir tudo.
 - Foi mesmo uma tragédia, eu nem sei o que te dizer. Só saiba que estou aqui, qualquer coisa e estaria aqui. - Melissa olha nos tristonhos olhos de Álvaro e segura suas mãos.
 - Você é uma grande pessoa, Mel, obrigado, eu só não sei o que fazer daqui pra frente. - Conforme a conversa com Melissa, parecia que ele conseguia desabrochar seus sentimentos. - Eu sinceramente não sei o que fazer.
   - Bom, quando perdi minha mãe, meu mundo inteiro caiu. Também tinha o sentimento de não saber o que fazer, sem ânimo pra vida. Com uma de minhas choradeiras, meu pai tentou conversar comigo. Eu não parava de soluçar. Daí ele me disse que minha mãe não gostaria de me ver daquele jeito, que eu não deveria parar de viver, porque isso não era o que ela queria. Aprendi que, devemos sempre lembrar dos momentos que essas pessoas passaram conosco, assim eles sempre estarão vivos, tanto em nossa mente, quanto em nosso coração.
    O silêncio reinou pela casa. Podia se ouvir os galhos das árvores dançando com o vento.
Álvaro olhava para a janela, enquanto Melissa olhava fixamente pra ele. Depois de alguns minutos, Melissa decide quebrar o silêncio e anunciar que estava de partida.
- Acho que vou indo, você precisa de um tempo sozinho. Mas Álvaro... me promete duas coisas?
  Ele quebra seu transe e vira novamente para a cozinha.
  - Sim claro, o que você quiser, Mel.
  - Primeiro que... tenta não pensar bobagens! O que quero dizer é que... é muito fácil fraquejar e fazer besteira nesses momentos. Me use como exemplo. Promete?
      Ele acena com a cabeça em sinal de sim.
      - E segundo, promete não deixar a torta se estragar... meio que deu trabalho e foi feito com carinho.
 Pela segunda vez no dia, Álvaro deu um singelo sorriso de canto de boca.
 Melissa se levanta, dá um beijo em sua bochecha e um abraço. "Tudo vai ficar bem!", ela sussurra no ouvido de Álvaro.
  Antes de chegar perto da porta da frente, Ele chama a atenção de Melissa.
      - Ela estava lá... não estava?
      - Sim, eu a vi. Ela estava com o marido.
    Uma leve tensão cobriu o ar. Melissa sentiu a tensão e decidiu caminhar lentamente até a porta.
    Álvaro pode ouvir a porta do carro da moça batendo. O silêncio voltou a reinar. Sem perceber, O pobre homem se encontrava no mesmo transe: o tempo parecia não correr, ele olhava fixamente para o jardim. Mas dessa vez sentia um aperto no coração e uma amargura na garganta. "Não posso viver desse jeito", ele pensa.
      Mais uma vez, ele foi em direção à biblioteca. Escolheu uns livros, tentou folheá-los..., mas nada conseguia. Depois sentou-se em um dos sofás do cômodo, numa das paredes havia um grande quadro de seu tataravô. Alguns traços dentre os dois eram semelhantes: o nariz elevado, os mesmos olhos castanhos, a pele branca e até a barba rala que crescia irregular pelo semblante.
Repentinamente seu celular tocou. Ele vai até a sala para atender. O número era desconhecido.                 
   - Alô?
   -Marcelo?
   Marcelo reconheceu a voz. Era Jaqueline, mãe de Miguel.
  - Desculpa se eu te atrapalhei. Só queria conversar contigo, você não falou comigo no funeral.
          -Não temos nada pra conversar.
     - Vejo que você ainda guarda rancor, isso não me faz feliz, sabia? Não é você que tem o sentimento que seu filho nunca vai te perdoar. Que ele morreu com esse mesmo rancor que você guarda.
       -Você nunca mais voltou desde o dia que foi embora. - Marcelo se irrita, levanta o tom da voz e começa a recuperar a força que tinha perdido. - Agora você vem com essa conversa de rancor. Isso é porque você nunca ligou pro menino e agora percebe o quanto perdeu.
      - Assim você me machuca.
   - Machucar? Você não sabe o quanto você o machucou com o que fez, nem sequer ligou para pedir perdão. Não se importou em saber como ele passava. Passar bem e não ligue novamente. Sua cretina!             
  No calor do momento, desligou o celular sem dar chances de a conversa continuar. Jaqueline conseguia tirar-lhe do sério só por dizer algumas palavras.
  Depois da ligação, veio o silêncio. O silêncio era de matar. A agonia também era. Levando as mãos à cabeça, suava frio.
     Queria chorar para aliviar a dor, mas suas lágrimas tinham evaporado de seus olhos. Ele tomou um pouco de força e decidiu ir ao jardim, tomar um ar fresco. O vento soprava fortemente nas roseiras vermelhas na qual ele se aproximou, com o sol escondido, a floresta que cercava a casa estava escura, sombria. Com os olhos fechados, deitou na grama. "Papai", foi o que ouviu. Levantou subitamente. O único som era dos galhos. Olhou para as direções e depois para a roseira. Esticou seu braço para apanhar uma bela rosa, mas perfurou o dedo com um espinho. O sangue levemente surgiu na pele. Lembrou-lhe de um daqueles dias ensolarados que passara com o filho. "Mesmo roseiras, que são tão belas, escondem espinhos", foi o que disse ao menino quando ele perfurou o pequeno dedo indicador.
    Foi até a biblioteca novamente e se trancou lá. O relógio de ponteiro sob a porta marcava onze horas. Mais uma vez, ele se encontrava vazio. Se deitara no sofá e lá permaneceu. Perdido em pensamentos, iludidos pelas memórias.